segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sobre a obviedade do ano novo - I




Em Dezembro todo cronista mostra a cara. É o mês da balança; um plantão para as reflexões do dia-a-dia que se acumularam até a chegada do ano novo. Até quem não escreve faz votos públicos por meio dos caracteres recheados de clichês e expectativas. As timelines das redes sociais ficam pequenas.

Quisera eu ser um Drummond e profetizar em Dezembro umas e outras coisas belas sem deixar de reconhecer as ruins. Mas o tempo não ajuda. Eu poderia dizer um sem-número de palavras capazes de adjetivar essa saga de trezentos-e-sessenta-e-cinco-dias que a gente chama de ano, reclamando e comemorando durante doze meses; mas não consigo.

Falta originalidade ao tempo. Quem sabe se o ano durasse uma década, ter-nos-ia assuntos novos e motivos de sobra para bater no peito e esperar o novo ciclo com um saldo positivo nos bolsos. A definição ocidental para o tempo se limitou a um petardo de estereótipos.

Você, senhora – coroa de dois filhos, marido e presente pra comprar – até vai conseguir entrar na academia depois da segunda semana de Janeiro e colocar em prática uma ou outra receita da Ana Maria Braga, quando o colega de trabalho do seu esposo for jantar na sua casa; mas não vai durar – no máximo até Abril, quando o Fantástico explicar a farsa da sua dieta.

Você, senhor – carro financiado, barriga de chope e contas a pagar – até vai conseguir beber menos, cortar o cigarrinho e atender ao que sua esposa católica apostólica romana pediu na época da quaresma e da menopausa; mas não vai durar – perderá o ritmo no primeiro churrasco antes do sábado de aleluia.

Você, adolescente – bixo de faculdade, com namorada nova e passado ilibado – até vai conseguir estudar, ser fiel e manter a forma e a convicção política longe de casa; mas não vai durar – verá de camarote tudo desabar depois da primeira cervejada da atlética e até vai achar graça nisso tudo enquanto estiver de ressaca.

Antes do meio do novo ano todos os votos e expectativas vão por água abaixo, escorrendo pelas mãos numa cusparada do destino. Os mais velhos se deixam levar por não ter mais nada a perder; são traídos pelo corpo. Os mais jovens corrompem a ideologia adotada em Dezembro ainda no começo do ano seguinte, quando chega o carnaval. Os mais velhos prometerão castigo aos mais novos; e estes saberão que aqueles não vão colocar a pena em prática, pois fizeram a mesma coisa em tempos passados.

Contenho-me com os pedidos e ambições de ano novo; chego a este sem quem era essencial em minha vida. Não encontro motivos para comemorar réveillon, senão por poder passar vivo, de um ano para o outro.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Entre Janeiros e Dezembros


Dezembro chegou para ele como um agiota – como quem pega de volta o saldo sem se preocupar com o prejuízo. O mês levou-lhe as calças e tudo mais. Cobrou sua dignidade. Desde o dia primeiro já se cansava das listas. Por ter aparência estável, de boa renda e bom coração, ninguém lhe esperava ‘não’. O senhor pode, você quer, seria uma honra. Uma dívida é medida por concordâncias. Aceitou tudo que o destino lhe dera, como que por osmose, ainda que não fosse muito. E deu tudo à vida, distraidamente. Em meados do mês teve ciência das apostas que fez ao longo do ano. A resposta é demorada e súbita, tudo ao mesmo tempo. Por razões que desconhecia, perdeu a mulher e o negócio. Voltou para a família. É sempre estranho quem volta para a família, isso porque a família incute um sentimento de culpa no sujeito, como quem avisa antes do resultado e depois relembra o conselho. Coitado, eu avisei. Pois bem. O sujeito que parecia ter tudo e não tinha nada não se contentava em perder. Perdia e perdia. O natal era pra ele uma desculpa para encher a cara – Dionísio nasceu no mesmo dia que Jesus, vinte e cinco. Por isso afirmava que o crédito era de Baco, e não de Cristo. Sobre presentes, relevava. Havia um dispêndio compulsivo em seu ser, algo que não era próprio, mas do sangue, uma necessidade efusiva de gastar o que já não era mais dele, como o tempo, como o amor. Dos males divinos, o sangue é o pior deles. O fator sanguíneo extingue a chance de escolha, distribui aleatoriamente os aliados, os vencíveis e os invencíveis, dizendo quão grande são os obstáculos afins do destino. O espírito natalino era uma máscara, um remédio que disfarçasse todo o estrago dos meses anteriores. Dezembro era, sobretudo, uma dúvida.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O homem que não queria vender




Das estranhezas do cotidiano, essa foi uma das grandes.

Depois de ler as notícias sobre o vinho ‘Toro Loco’ (espanhol), premiado pelo International Wine & Spirits Competition, saí correndo atrás de uma garrafa. O motivo é o preço: 4 euros, equivalente a 12 reais (lá). A notícia repercutiu, todos foram atrás do vinho que (supostamente) teria desbancado garrafas com cifras muito mais altas.

Rodei toda Pouso Alegre e nada de encontrar. Supermercados, armazéns, e nem o focinho do Toro Loco apareceu. Desisti de procurar.

Eis que passando torto e distraído frente a um empório, olho para a vitrine e dou de cara com ele, o próprio Toro Loco, como na imagem da internet, como tudo nessa vida que só nos aparece quando abandonamos as esperas.

Entro no recinto, dirijo-me até o vinho, saco a garrafa e digo – vou levar!
O dono da loja me responde – Não vai!

É claro que eu não entendi. Pensei que fosse brincadeira, mas o senhor falou sério. Percebendo o meu espanto, ele se justificou (de uma maneira que não explicasse muita coisa). Disse-me que não tinha nada com aquilo, mas que eu não gostaria do vinho, me desafiando a conseguir beber uma garrafa sozinho. Segundo ele, eu não conseguiria nem provar. Explicou que as notícias foram equivocadas, e que o vinho teria desbancado apenas os outros mais baratos da categoria, por isso foi bem sucedido. Não parou por aí, afirmando que o vinho é o mais vendido da sua loja, e que só nesse mês encomendou 60 caixas.

Um tanto incoerente, não?

Pensei comigo se seria a última garrafa e que quem sabe ele estava reservando o tinto para alguém especial, mas logo me virei e vi outras iguais na vitrine (!!!).

Insisti – Vou levar por curiosidade.
E ele – Deixa disso, com o preço desse vinho, você leva coisa melhor.

Pronto, o cara me convenceu. Eu já parecia cansado. Não levei o vinho dele, tampouco entendi sua insistência em resistir a venda. Eu disse que voltaria, quem sabe para comprar outra garrafa. Nisso ele concordou. O senhor explicou que é justamente o que queria, que eu voltasse à sua loja, pois se eu comprasse o tal Toro Loco, não iria voltar de raiva, porque o vinho é mesmo ruim.

Cada um é honesto de um jeito. Nunca vi vendedor não querendo vender. Quase o aconselhei a tirar as garrafas da vitrine. Agradeci a honestidade e fui embora. Com o dinheiro do vinho, comprei cerveja.

______


Algumas notícias sobre ele:

http://culinaria.terra.com.br/receitas/bebidas/premiado-vinho-de-r-25-tem-300-mil-garrafas-vendidas-em-2-meses,14102d566b72a310VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html

http://www.sommelierwine.com.br/toro-loco-tempranillo-2011-chega-ao-brasil.html

http://basilico.uol.com.br/4564-artigos-R$-25-A-GARRAFA

domingo, 2 de setembro de 2012

Luxúria


A manicure, atordoada pelos pensamentos que lhe atormentavam as idéias, foi à igreja confessar suas dúvidas e pecados espirituais. Decidiu ir à hora do almoço, pois neste tempo a fila da confissão era menor e o alimento sagrado já tinha feito digestão no estômago divino, o que reduziria o tamanho das penitências concedidas.
Certa de que o motivo que a levou era pecado dos mais graves, dirigiu-se ao confessionário.
– Não sei por onde começar, Padre.
– Pois trate de ir falando dos pecados mais inocentes.
– Não sei como... O que é inocente aos olhos do Senhor?
– As criancinhas – disse o padre, passando de um semblante risonho para um menos paciente – Ora, Dona Marta, não é a sua primeira vez.
– A minha já foi há muito tempo! – Soltou num riso, a quarentona, percebendo depois que o padre não tinha achado graça nem atribuído um espírito esportivo à brincadeira.
– Dona Marta, o confessionário não é lugar para piadas.
– Desculpe-me, Seu Padre.
– Pois bem. Quais são os seus pecados?
– Sua Santidade precisa mesmo saber? Não prefere entrar num acordo de penitências, jogar-me logo uns dez rosários, três novenas e me liberar de pronto? Prometo rezar o ato de contrição e jurar arrependimento pelo que fiz; afinal, sou conhecida na paróquia, não ficaria legal que, eu, senhora de família, saísse por aí dizendo aos quatro ventos o que se passa na minha vida. Eu também não gostaria de incomodar-lhe, pessoa da mais alta classe, de puro espírito e passado ilibado, com todas as minhas baboseiras.
– A senhora sabe muito bem dos procedimentos da Igreja quanto a isso, Martinha – explicou o padre, já cansado de ouvir tanta desculpa e ao mesmo tempo curioso pelo que poderia ser motivo de tanta represália.
– Bom, Seu Padre – e começou a manicure – o senhor sabe que minha profissão às vezes é um pouco parecida com a sua. As clientes chegam, se sentam, e enquanto fazem as unhas, deixam para mim uma série de histórias.
– Isso é fofoca, Marta – interrompeu o padre.
– Acontece que na semana passada – continuou – a Cida do Tadeu chegou me dizendo que queria fazer as mãos. Como o salão estava vazio, ela disse também que tinha um bafão pra me contar, história das cabeludas. Moça direita que sou, lhe falei logo que não gosto de boatos.
– O que ela disse? – mostrou-se interessado o padre.
– Disse que já faz um tempo vê o Carlos, marido da sua vizinha, a Leila, saindo mais cedo de casa e voltando tarde do serviço. Curiosa, a Cida decidiu segui-lo, e foi parar no botequim da Rua Lituma. Para a sua surpresa, o marido vizinho não ficou muito tempo; somente o bastante para três conhaques. Ela, que olhava de soslaio, não reparou que ele saía pela lateral do bar, tampouco que o mesmo vinha surpreendê-la por trás com uma fala ao pé do ouvido: “Perdida por estas bandas, Dona Cida”? Ela desculpou-se, dizendo que tinha parentes no Bairro, e por isso caminhava por tais ruas naquele horário. Mas o homem, não satisfeito, convidou-a para uma cerveja, que a Cida somente aceitou por educação.
– Meu santo Deus, que perigo! – exclamou o Padre.
– Calma, tem mais. Na saída do boteco o garanhão ofereceu-se para acompanhar a dama, dizendo que tinha algo para lhe mostrar no galpão do beco. Apenas por curiosidade, a Cida aceitou a oferta. Mas como o Senhor sabe, não há luzes no galpão do beco, muito menos naquelas horas. Ela disse não se lembrar muito bem, mas o Carlos pegou-a de jeito pelas coxas, beijou seu pescoço, e lhe disse duas ou três safadezas das quais ela não pôde resistir. Confessou-me tudo, somente porque estava se sentindo sufocada com aquilo e precisava desabafar a alguém.
– Traição, que absurdo! A Dona Cida! – disse ele, indignado – Martinha, seu pecado é fofoca, três ave-marias.
– Espere, tem mais.
– Mais? – arregalou os olhos.
– Dois dias depois, chegaram ao salão duas clientes. A Lídia e a Patrícia. Na hora da confissão tradicional tive uma surpresa: ambas tiveram um caso com Carlos. Mas, ao contrário da Cida, elas não se pareceram arrependidas nem culpadas. Disseram-me que o garanhão infiel tinha descoberto um certo Ponto G, do qual os respectivos maridos não faziam ideia. Diante da situação, precisei me mostrar menos indignada.
– Que luxúria! Mais dois pais-nosso.
– Padre, espere.
– Conte-me mais.
– Leila, a esposa traída, foi ao salão na quarta-feira. A extrovertida começou o diário contando a todas sobre sua felicidade conjugal, o bom-humor de seu marido, sua fidelidade, e os presentes que dava a ela. Perguntou-me como as coisas andavam em minha casa e disse que eu deveria ostentar a boa situação, como ela faz. Fiquei vermelha.
– Deus Pai! E aí?
– E aí pude perceber que, enquanto ela falava, todas as clientes riam maliciosamente, fazendo-me perceber que não três, mas uma dezena de mulheres tinham trepado fervorosamente com Carlos.
– Dona Martinha, poupe-me destes termos! O seu pecado ainda continua o mesmo: fofoca e luxúria.
– Mas Padre, tem mais.
– Cristo amado!
– Voltei pra casa pensando no assunto. Fazia já muito tempo que não tinha com Júlio, meu esposo, uma noite de amor. E o Senhor sabe que essas histórias deixam a gente afoita, com um calor que vem de dentro e nos faz abrir as pernas e...
– Marta!
– Perdão – e continuou a quarentona – Cheguei em casa, vesti aquela lingerie vermelha do aniversário de casamento do ano passado, coloquei uma Champanhe para gelar e esperei meu marido na cama. Ele chegou com uma cara de cansado, um pouco assustado com a cena. Perguntou-me o que significava aquilo. Eu disse que queria descobrir o Ponto G. Se todas tinham, eu também deveria ter, ainda que um pouco escondido aqui nesse mato que anda entre as minhas virilhas.
– Que horror! Já disse que estes termos são desnecessários aqui! – mostrou-se indignado novamente o Padre, porém interessado no desenrolar da história – o que houve então?
– Não houve nada. Meu marido deitou-se na cama, virou e dormiu.
– Menos mal, Dona Marta, menos mal! Pode ir embora, reze as penitências e está perdoada.
– Padre, tem mais.
– Mais? – o padre parecia não acreditar.
– Aquele calor que eu estava sentindo só aumentou. Despregava o botão da saia cada vez que escutava outra história envolvendo o garanhão infiel da Leila. Ontem fui à missa rezar para que a luxúria se afastasse de mim e eu conseguisse, enfim, voltar à normalidade e trabalhar em paz. Ocorre que no momento do evangelho, quando todos se atentavam para o altar, senti um apertão na cintura e escutei ao pé do ouvido: “Preciso falar com você.” Quando reparei, era Carlos. Desconfiei que ele me condenasse por tudo o que eu sabia e que pediria sigilo. Fui então encontrar-lhe, somente por curiosidade.
– Encontrar-lhe onde?
– E então – continuou ela, ignorando a pergunta do padre – quando conseguimos um lugar discreto, onde ninguém poderia nos observar, o desrespeitoso homem me tascou um beijo. Quando tentei resistir, era tarde demais, sua mão já tocava no meu Ponto G. Mas foi rápido, o local só se sujou um pouquinho.
– Pelo amor de Deus! O que é isso, Dona Marta! – e de olhos arregalados, quis saber – mas onde foi que vocês se amassaram?
– No confessionário. Mas não se preocupe Padre, eu vim trazer esse paninho pra limpar onde o Senhor está sentado.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Bordel

A puta se maquiava frente ao espelho. Um cliente entra no quarto do bordel e avança até ela, beijando-lhe no pescoço. Era o advogado:

- Minha linda, que saudades!

A mulher se vira e sorri falsamente:

- Também senti sua falta, meu moreno.

Ele arrisca outro beijo, mas ela se vira.

- O que foi, querida?

- Trouxe o que eu pedi?

- Mas é claro que eu trouxe!

A puta despe o hobby transparente que estava vestindo e estica a mão para o cliente.

- Posso ver? – animou-se.

- Feche os olhos!

Ela fechou. O advogado tirou do bolso um pequeno porta-joias de veludo e colocou na mão da moça.

- Um anel de brilhantes, querida! – exclamou ele.

- Um?

- Por que o espanto, meu amor?

- E o seu anel, onde está?

- E eu lá sou homem de usar anel de brilhantes! – irritou-se.

A puta deu as costas, virando-se para o espelho. Colocou novamente o hobby transparente.

- Eu esperava dois – ela confessou – deveríamos usar como alianças! Como prova de que somos um do outro.

- Está bem, Vera. Vou comprar-me outro anel! – sentou na cama e deu duas palmadinhas do colchão, convidando-a – Agora venha aqui que eu vou te amar toda!

Ela tira novamente a roupa transparente. Senta, empina o nariz, e permite ser beijada no pescoço. Mas logo suspira e se levanta novamente.

- Quando estivermos os dois, devidamente compromissados, só me faltará um favor para que eu seja realmente tua!

Ele assusta:

- Mais um favor? Meu?

- Sim, teu. Promete que me faz?

- Sim, Vera. Tudo o que quiser!

A puta explica:

- A Beth, minha amiga, disse ter levado uma bolada na justiça depois que o advogado dela mostrou-lhe seus direitos. Nem precisou mais trabalhar!

- E eu, onde entro na história?

- Você também é advogado. Quero que me mostre os meus direitos. Na justiça!

- Mas você é...

Ela interrompeu:

- Sou trabalhadora!

- Quer direitos trabalhistas?

- Sim. Trabalhistas! – exclamou a mulher, toda pintada e esperançosa. Completou – Quando conseguir meus direitos, podemos morar juntos, quem sabe no litoral!

Ela se senta novamente na cama. O advogado tira o paletó, a gravata e desabotoa a camisa. Ela observa-o, esperando uma resposta mais conveniente. Ele promete:

- Sabe que eu posso te conseguir isso mesmo?

- No duro?

- Sim. Pensando melhor, você tem vários direitos. Como trabalha à noite, pode exigir adicional noturno. E toda vez que ficar até mais tarde, trepando feito uma louca, adquire direito às horas extras. Quando o cliente é caminhoneiro, bicheiro ou drogado, pode pleitear adicional penosidade, sem falar nos adicionais de insalubridade e periculosidade, quando o local for muito sujo ou o cliente estiver armado. Vai do risco do programa! Vou conseguir anotar a sua carteira de trabalho!

Ela se exalta e beija o homem. Fica radiante. Exclama:

- É tão bom saber que alguém reconhece o meu serviço!

- E como! – ele ri de lado.

O advogado avança com a mão até os seios dela. Tenta apalpá-la, mas ela resiste:

- Hoje não estou bem. Podemos conversar antes?

- Mais?

- Você gosta ou não de mim?

- Gosto, Vera. Claro que gosto!

Ela começa:

- O povo pensa que, porque sou puta, sou maluca – a bem da verdade que nunca reclamei muito do que faço. No começo, até gostava. Conseguia tirar um bom trocado, escolhia só empresário e mauricinho. O problema é que o nível do bordel caiu um pouco. Apareceram uns tipos estranhos por aqui. Teve um que me pediu pra vestir roupa de homem enquanto ele desabafava suas queixas. Chegam também uns tipos sujos, violentos, que me pedem para fazer umas posições estranhas. Minha cama vira um circo! Esses dias tive câimbra no meio da transa. Não tive como explicar pro coitado o que estava acontecendo, ele era surdo e mudo, pensou que eu estava me contorcendo de tesão. É complicado. O dono do ponto também anda dando preferência para as mocinhas mais novas, e o pior é que as coitadas nem conseguem fazer um bom programa. Semana passada escorreguei no box do chuveiro, caí no chão molhado; minha bunda ficou toda roxa, e todo mundo viu quando dancei no pole dance. Foi a primeira vez que me vaiaram. Cansei de fingir orgasmo. Como eu te disse, não é porque sou puta que sou louca. Na verdade, sou bem tradicional – gosto de papai-mamãe e juras de amor ao pé do ouvido!

O advogado escutou a confissão assustado, de olhos arregalados. Viu que a prostituta não fazia o seu tipo. Pensou consigo mesmo:

- Puta que quer ter seus direitos eu até aceito, mas nunca vi nenhuma dizer que prefere papai-mamãe!

Levantou-se, bateu a porta do prostíbulo, e foi embora.

Asilo

O enfermeiro caminhou pelo salão do asilo até chegar ao quarto de repouso. Percebeu no canto do cômodo uma velha cabisbaixa.
Sugeriu:
– A senhora deseja dar uma volta?
– Acha mesmo que tenho condições para isso?
– Vamos, te faço companhia.
– Você fala como se ignorasse a minha cadeira de rodas.
– E a senhora ignora o dia lindo que está lá fora.
– Bem vindo à vida, enfermeiro! Este jogo de ignorâncias rechaçadas. Há outra saída senão ignorar as coisas alheias? Não me recrimine, bípede de família e lar próprio! Respeite ao menos o meu pedido de estar em paz. Ignore-me você também, não deve ser tão difícil. Pergunte ao meu ex-marido como fazer. Ele, que me abandonara em tempos de necessidade, fazendo com que eu caísse em prantos, preocupada em esquentar-me sob os lençóis cremados. Procure minha filha e diga que, como ela, você também deseja me ignorar. Aquela ingrata deve se lembrar de como fugiu de casa, após conhecer um engenheiro da capital. A cada vez que você chega, moço, torço para que não me olhe com essa cara de piedade. Me dá vontade de cuspir-lhe à face. Finja, pelo menos, que não sou uma coitada. Faça parecer com que eu me sinta forte – como se tivesse ainda duas pernas e não me molhasse as calças. Meus ossos gemem, choram – e quem me dera chorar também! Nada mais me surpreende, rapaz. Sei dos dias em que haverá chuva e também daqueles ensolarados – como o de hoje, que você julga ser lindo. Colo o rosto à janela e observo: como são previsíveis os seres humanos! Sinto falta de quando a vida continha novidades. Tudo aqui é cinza e frio. Uma caixa de corpos fracos e pegajosos, aguardando que os ponteiros do relógio sentenciem a esperada hora. Tempestade de areia em ampulheta. E lá vou eu ser ignorada de novo – por uma amiga que morre ao lado com derrame cerebral, ou por outra, à minha direita, que me pergunta o nome a cada surto de Alzheimer. O asilo é um misto de vasculares entupidos e corações sôfregos; um labirinto em linha reta, onde se conhece a saída, mas não consegue alcança-la. E então, como se não bastasse esse dilúvio de pesares, me vêm ainda uma porção de fiéis aos pés da cadeira de rodas. Fanáticos perdidos, que rezam, choram e prometem-me vida eterna. Arre! E eu lá quero viver para sempre? Desejo morrer como uma chama que se apaga, como um vidro que se estilhaça – sem qualquer esperança de reconstituição. Quero descansar. Reze por mim, enfermeiro, e ignore a minha existência. 


Terapia


Sabe o que é, Doutor, eu não tenho nada. Não sou doente não. Minha esposa me mandou aqui. Disse ter ligado pra secretária na terça, não, na quinta, sei lá, mas não tenho nada pra falar. Não gosto muito de silêncio, se é que me entende. Nem tenho tempo pra isso; no banco é uma correria: caixa, conta, porta giratória – é tudo uma loucura. Tenho cara de louco? Então, Doutor, não é pra eu estar aqui, não senhor. Ademais, não me agrada a ideia de ficar falando sozinho. Se o senhor quiser saber da minha história, podemos muito bem marcar uma cervejinha no bar do Jair, logo ali, em cima da Igreja, sexta-feira seria ótimo. E esse jeito de conversar deitado, olhando pro teto? Quem inventou? É pra ficar reparando que o ventilador está sujo? Estranho né, Doutor, que quando novo eu costumava reparar nas coisas; agora velho, com a vista cansada, tudo parece tão igual. Minha esposa, a Ruth, vive reclamando que não reparo nela; no cabelo, na unha, na roupa. A coitada também me vem falar da vida na hora do Jornal, ou atrasa e bate com o maldito horário do jogo, puta que pariu, né Doutor, tanta coisa pra preocupar: o goleiro do meu time, a dor nas costas, o caixa no banco, e a Ruth vem me alugar justo na hora errada. Eu reparo nela sim, sei até o dia que ela vai à missa, é sempre no Domingo, Doutor. A gente até deita junto, mas eu durmo primeiro. Ela não gosta, fica brava, diz que faz questão de conversar, que é a única hora do dia que a gente tem, que de manhã é uma correria maluca pra levar os moleques pra escola. Puta que pariu, né Doutor, fico o dia inteiro naquele inferno, já até perdi dinheiro, e a vista cansada, a dor nas costas, o goleiro do meu time, e a Ruth me cobrando que eu não reparo nela, que eu durmo primeiro e que eu não levo os moleques pra escola. Já fiz muito isso, Doutor. Quando a gente casou, eu fazia o café e até buscava o pão. Mas hoje, com essa dor nas costas... O gerente do banco ta me cobrando, fica falando pra eu ficar de cara boa com os clientes porque é a nova política da empresa. Puta que pariu, política da empresa, manda o empresário vir contar dinheiro no meu lugar então. Já te disse que perdi dinheiro esses dias? Não dá, Doutor, a vista ta cansada. A propósito, já comecei a falar, o senhor não vai dizer nada? O que quer saber agora? Dos meus filhos? Já te disse que tenho filhos? Me estouram a paciência, fico puto. Uma desorganização, um descaso com a vida. Na idade deles eu já trabalhava, e ai de falar alto com alguém, tomava um tapa na boca. Mas são bonzinhos, os dois. Pelo menos não usam drogas. Filho viciado eu não aceito. O filho do Vitor, por exemplo, é um puta maconheiro – já até falei pro meu mais velho ficar longe. Educação moderna é difícil, se é que o senhor me entende. A escola mete tanto o bico que to quase entregando o mais novo pra ela cuidar. Te falei que sou casado mesmo? No papel? A Ruth é gente fina, mas não sei, não tenho mais tanto tesão, sabe Doutor. O sexo não é dos piores, mas também não faço tanta questão. Fazer amor é bom, todo mundo sabe. Mas parece companheira, amiga, sei lá. Fico meio sem graça de pedir pra ela fazer algumas coisas. Não a traio não. Mas meu olho não tem dono, se é que o senhor me entende. Não posso ver a filha do Seu Tomás da padaria que fico louco, Doutor. A menina é uma delícia. Mas não traio ela não, tadinha, imagina a Ruth, ia ficar triste demais. A Ruth esses dias deu pra falar da minha barriga, como se a dela também não tivesse crescido. Veja só, com essa dor nas costas, essa vista cansada, esses dois moleques, se eu não tomar uma cerveja no fim do dia, prefiro morrer de vez. Não tem jeito, Doutor. Estou cansado. Sinto sono o dia inteirinho. De vez em quando vou ao banheiro do banco, tranco a porta, sento na privada e tiro um cochilo. Ninguém vê, pensam que estou cagando. Não dá, Doutor, é muito sono mesmo. Minha esposa até me deu vitamina pra tomar, mas eu esqueço. Tanta coisa pra lembrar, conta de água, luz, telefone, puta que pariu. Bonito o ventilador do Senhor, já consegui reparar, é de bronze né? Se minha esposa visse, ia querer um igualzinho, haja dinheiro. Sabe, Doutor, o meu pescoço ta doendo de ficar deitado assim, vou levantar, acho que já deu, fiquei até sem graça, só eu falei, mas foi bom, Doutor, não doeu nada, com 55 anos, confesso, foi pior fazer o exame da próstata. Olha, conheci o senhor agora, mas hoje é sexta, sabe como é, tem um joelho de porco e um copo de cerveja me esperando, ali em cima da igreja, no bar do Jair, e já é tarde, não posso atrasar, o Roberto e o Armando já pediram até outra mesa, vamos comigo, Doutor, a gente passa em frente à padaria e eu te mostro a filha do Seu Tomás, uma delícia.